Eis que o sistema financeiro aberto ou Open Banking, agora rebatizado de Open Finance, avança no Brasil e estamos oficialmente na Fase 3 de iniciação de serviços de pagamentos com PIX. O Open Banking representa uma inegável oportunidade de transformação, ou melhor, de revolução do sistema financeiro ao colocar o usuário final como dono de seus próprios dados e não mais a instituição financeira. Trata-se uma tendência global e que veio a reboque das regulamentações de privacidade de dados, em particular do GDPR na Europa e da Lei Geral de Privacidade de Dados (ou LGPD) no Brasil e que colocaram os clientes no centro e no controle de suas informações, em particular, de seu histórico financeiro conquistado ao longo de anos de relacionamento com as instituições financeiras.
A indústria financeira como um todo cada vez mais tem identificado e compreendido os benefícios dos modelos de inovação aberta, ou Open Banking e que trata-se de uma tendência inevitável, que vem sendo acelerada no setor. Estamos falando da livre movimentação de informações financeiras e do compartilhamento padronizado dos dados dos clientes, desde que com a devida autorização e o consentimento explícito dos mesmos, entre os bancos e outras instituições reguladas e autorizadas pelo Banco Central do Brasil (BACEN).
Esta revolução, entretanto, não se restringe apenas às áreas bancária e financeira. A Resolução Conjunta BACEN/CMN nº 01/2020 determina, no escopo da Fase 4, a abertura de informações relacionadas a produtos de seguros, previdência complementar aberta, capitalização, operações de câmbio e investimentos, sendo estes produtos de seguros e previdência distribuídos pelo canal bancário. Segundo a própria Superintendência de Seguros Privados (Susep), em seu documento de exposição de motivos para o Open Insurance, tornou-se necessário regulamentar o Open Insurance no Brasil, para que seja evitada a assimetria no mercado de seguros e previdência, afinal nem todas as sociedades reguladas pelo Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP (e supervisionadas pela Susep) são participantes de conglomerados financeiros ou fazem uso do canal bancário e para que seja cumprida e aplicada a LGPD no sistema financeiro.
Em julho de 2021, a Susep publicou a Resolução CNSP 415/2021 e a Circular Susep 635/2021 e que passam a instituir o novo Sistema de Seguros Aberto no Brasil, também conhecido como Open Insurance. Na prática, isso implica que os usuários agora poderão acessar e compartilhar seus dados com outras seguradoras ou terceiros autorizados, se assim desejarem e consentirem. O advento do modelo Open Insurance amplia pois a lista de empresas autorizadas a acessarem o ambiente Open Finance, o que inclui Seguradoras, empresas de previdência complementar aberta, sociedades de capitalização, participantes do Sandbox regulatório da Susep e demais empresas credenciadas pela Susep como Sociedades Iniciadoras de Serviços de Seguros (SISS).
Em um mercado que busca acelerar com a inovação e com o advento das Insurtechs, startups que unem o uso de tecnologia aplicada a seguros, o Open Insurance nasce para trazer ainda mais inovação ao setor. O relatório Distrito Insurtech 2020, por exemplo, mostra que o ano de 2020 terminou com 113 insurtechs no Brasil, o que representa um crescimento de 47% com relação ao ano anterior. Inspirado no Open Banking, o novo sistema do Open Insurance surge para garantir ainda mais segurança aos consumidores de produtos de seguros e oferecer maior controle no acesso de seus dados, reduzindo assimetrias no acesso a informações dos clientes, entre as empresas e estimulando a oferta de novos produtos e serviços ainda mais personalizados para cada perfil de consumidor.
Interoperabilidade entre o Open Insurance e Open Banking
Um dos princípios fundamentas do Open Insurance é a total interoperabilidade com o Open Banking, estruturando o arcabouço fundamental para o avanço do Open Finance no Brasil. O mecanismo de interoperabilidade com o Open Banking prevê a possibilidade de aproveitamento das infraestruturas e funcionalidades já instaladas lá para o Open Banking no Brasil, assim como padronizar boas práticas de segurança, padrões e protocolos de comunicação (ao compartilhar dados de clientes) e padronização de APIs (ou application programming interfaces). Será admitido também o uso compartilhado de infraestruturas de suporte do Open Banking, tais como o mecanismo de resolução de disputas do Open Banking.
O fato é que com uma infraestrutura única ou completamente interoperável será mais fácil que requisições de compartilhamento de dados em um ambiente, por exemplo pelo participante do Open Insurance, sejam reconhecidas e tratadas no outro ambiente, pelo participante do Open Banking. Alguns de vocês podem achar que a utilização de infraestruturas e padrões pré-existentes para o Open Banking pode desestimular a inovação. Muito pelo contrário, isto deve acelerar o desenvolvimento de soluções orientadas ao mercado de seguros, uma vez que as seguradoras agora irão focar mais nos aspectos do negócio e na experiência do cliente e menos em aspectos tecnológicos (ex. protocolo de segurança, padrões de autenticação, etc).
Adaptações na infraestrutura serão necessárias? Com certeza, serão. O Open Banking tradicional, por exemplo, não trata dados de telemetria, ou seja, aqueles coletados por dispositivos eletrônicos pré-instalados no veículo automotor, normalmente via mecanismos de IoT (ou internet of things), ao dirigir um veículo e que capturam informações que ajudam a determinar o perfil e modo de direção do motorista segurado. É fato aqui que adaptações aos padrões e infraestruturas existentes serão necessárias. Mas é inegável o benefício para as seguradoras e logo também será para as gestoras e corretoras de investimentos (através do Open Investment), de utilizar uma Infraestrutura compartilhada, assim como as boas práticas e os padrões de segurança do atual modelo Open Banking.
Tal integração acelerará o desenvolvimento de soluções pensadas na gestão e otimização da vida financeira completa dos consumidores, colocando no mesmo ambiente todos os produtos do sistema financeiro: bancários, securitários, previdenciários, capitalização e investimentos.
No diagrama abaixo apresento, do ponto de vista regulatório, a relação e a interdependência entre as resoluções Susep e Bacen de forma a promover a interoperabilidade entre os modelos, criando o que chamamos de Open Finance no Brasil.
Inovação e transformação do Setor de Seguros
O avanço do Open Insurance vai proporcionar mais inovação no setor e estimular a transformação digital nas empresas do ramo que, a partir de agora, deve avançar em um ritmo cada vez mais rápido. Conforme o modelo Open Finance ganha força, as seguradoras que quiserem se destacar no mercado terão que ir além da simples adequação à regulação do Open Insurance, mas deverão buscar ativamente novas formas de rentabilização do negócio, seja na forma de novos produtos e serviços, maior personalização nas ofertas (graças ao acesso aos dados dos clientes), através da criação de novos modelos de negócios em colaboração com as insurtechs, ou mesmo embarcando um produto de seguros de maneira transparente e fluida dentro de uma jornada de originação de crédito digital do consumidor.
O setor de seguros é sem dúvida um dos setores mais regulamentados e competitivos do mercado porém ainda possui um ecossistema de TI por vezes dependente de legado e com pouca flexibilidade de adaptação, o que se reflete em maiores custos de manutenção de sistemas, processos por vezes com baixo nível de automação, uso limitado dos dados que coletam dos seus clientes e, por consequência, tudo isso também se reflete nos valores dos prêmios cobrados de seus segurados. Em um país como o Brasil onde a penetração e consumo de produtos de seguros ainda é baixa comparado a economias mais desenvolvidas, o potencial de crescimento é gigantesco e a oportunidade é única de concretizar de vez a sua verdadeira transformação digital e lançar novos produtos mais personalizados, com menores custos, ainda mais inclusivos e que alcancem uma fatia muito maior da população brasileira.
Vale destacar que a Susep desde 2019 vem avançando com um novo marco regulatório para o setor de seguros, com o objetivo de simplificar aspectos regulatórios, oferecer mais flexibilidade para as seguradoras lançarem e comercializarem novos produtos, habilitando novos modelos de negócio, tais como os seguros intermitentes e paramétricos, assim como reduzir custos de capital necessários pelas empresas, além de promover maior concorrência e inovação no setor de seguros no Brasil.
Temos em curso um importante processo de desregulamentação do setor, que avança de maneira contínua e consistente e destaca-se por iniciativas tais como: o novo sistema de registro de operações e movimentações de seguros (o SRO), a emissão de títulos vinculadas a riscos de seguros e resseguros (ou Insurance Linked Securities ou ILS), o avanço do Sandbox regulatório que facilita o acesso ao sistema a empresas inovadoras que querem experimentar novos produtos e serviços de seguros em um ambiente com regras mais flexíveis e controlado pela Susep, assim como o recente anúncio da Circular Susep nº 638 que reforça a segurança cibernética entre suas supervisionadas.
Mas os sinais de transformação não param por aí. As seguradoras agora irão poder alavancar a estratégia de seguradora aberta (Open Insurance) para acessar dados históricos e financeiros sobre seus clientes, potencializando a revisão de seus modelos de riscos e precificação, desde insights sobre os perfis mais adequados de produtos que considerem o comportamento do consumidor, até novos produtos e serviços por assinatura baseados em uso e frequência de consumo. Quem sabe até repensar estratégias para alcançar novos públicos e expandir a base de produtos e clientes, maximizando o retorno de seus investimentos.
Vamos dar uma olhada em alguns benefícios que a estratégia Open Insurance pode ajudar a alavancar negócios nas seguradoras:
1. O Agregador de Dados e Insights de Clientes
A regulação do Open Insurance da Susep traz à tona um novo participante: o Iniciador de Serviços de Seguros (SISS).
Segundo o artigo 2º, inciso IX, da Resolução CNSP 415/2021, a sociedade iniciadora de serviços de seguros é a “sociedade anônima, credenciada pela Susep como participante do Open Insurance, que provê serviço de agregação de dados, painéis de informação e controle (dashboards) ou, como representante do cliente, com consentimento dado por ele, presta serviços de iniciação de movimentação, sem deter em momento algum os recursos pagos pelo cliente, à exceção de eventual remuneração pelo serviço, ou por ele recebidos;”.
Ainda segundo o artigo 8º, § 1º, inciso II da Resolução CNSP 415/2021, as sociedades iniciadoras de serviços de seguros devem “ser uma instituição iniciadora de transação de pagamento, conforme estabelecido na regulamentação do Open Banking”.
Ou seja, a resolução do Open Insurance prevê a figura do agregador de dados, caracterizada como uma sociedade iniciadora de serviços de seguros credenciada (ou autorizada) pela Susep e devidamente autorizada a acessar a estrutura do Open Banking (BACEN) como um iniciador de transações de pagamento. Característica esta fundamental para garantir a interoperabilidade entre os modelos Open Insurance e Open Banking.
Um instante de reflexão. Para a instituição se tornar um agregador de dados no modelo Open Insurance, além de ser autorizada pela Susep ela também precisará ser uma instituição autorizada a funcionar pela autoridade monetária (BACEN). Uma característica importante é que o iniciador de serviços de pagamento autorizado (inspirado no modelo europeu do PISP, ou Payment initiator service provider) somente pode iniciar transações de pagamentos e não atuar como um agregador de dados. Temos aí a representação, através da nova figura do SISS, de um modelo de atuação no Open Finance que remete aos cenários de uso aplicados a um AISP (ou Account information service provider) no PSD2 europeu.
Ao utilizar dados relativos a hábitos e comportamentos de consumo dos clientes, as seguradoras têm as ferramentas necessárias para categorizar, analisar e compreender mais profundamente seus clientes. Através do uso da análise de dados e da inteligência artificial (IA), terão a capacidade de segmentar melhor os seus clientes, gerar insights únicos e extremamente individualizados, abrindo espaço para que as seguradoras possam adotar uma abordagem hiperpersonalizada e mais ampla que vai além da análise de dados demográficos (como idade, sexo, endereço) e que contempla também o estilo de vida de cada consumidor, assim como preferências pessoais.
2. Experiência personalizada do cliente
As expectativas dos clientes quanto a uma esperiência incrível no acesso a serviços digitais continua a crescer e cada vez mais estão conectadas em suas jornadas diárias. E para tal, as seguradoras precisarão de acesso a maiores volumes de dados relevantes sobre este clientes. Quer melhor informação do que dados de histórico de financiamentos e pagamentos realizados por estes consumidores como base para análises mais avançadas e ofertas de produtos e serviços hiperpersonalizados para clientes cada vez mais exigentes?
Temos aí a oportunidade de alavancar fortemente o uso de tecnologia e novos modelos de plataformas digitais que permitem incorporar o seguro na jornada diária deste consumidor de maneira transparente ou quase “invisível”.
O Embedded insurance (ou modelo de seguros embarcado e invisível) tem o potencial de ampliar fortemente a oferta de seguros, com maior alcance e expansão da base de clientes, uma vez que o seguro (ou cobertura) agora pode simplesmente estar embutido durante a experiência de compra ou contratação de um produto ou serviço. Baseado na colaboração com agentes não seguradores, tal como o canal não financeiro de uma varejista ou ecommerce, foca na experiência do cliente ao motivar o usuário a adquirir a proteção associada ao produto ou serviço. Que tal contratar um seguro de vida junto a uma contratação de crédito em um canal de uma fintech de crédito? Quem sabe ainda explorar novos modelos como a compra de um produto no ecommerce, com a contratação do financiamento e do seguro integrados em uma experiência digital, simples e com o mínimo de fricção? Como exemplo, a Insurtech americana Lemonade oferece modelos baseados em embedded insurance e que podem ser facilmente integrados através de APIs, permitindo a oferta de produtos de seguros personalizados, em diversos canais como por exemplo o ecommerce e um modelo de contratação como serviço ou as-a-service.
O Open Insurance favorece modelos como o embedded insurance, uma vez que alavanca uma plataforma de tecnologia regulamentada e autorizada, combinada com dados de Open Finance, capacidade analítica poderosa, automatização da subscrição, precificação dinâmica e experiência fluida de contratação embarcada em uma plataforma digital e segura.
3. Gestão de Riscos de Seguros
O acesso a novas fontes de informações e capacidades de análises poderosas permitirão que as seguradoras tomem melhores decisões em relação à determinação e gerenciamento de riscos, subscrição e precificação.
O Open Finance deve oferecer às seguradoras informações sobre histórico financeiro e de crédito dos consumidores, o que deve impactar diretamente na forma como as seguradoras determinam e precificam seus riscos (ou Insurance Risk), permitindo às mesmas trabalhar em ofertas e em pacotes de produtos e serviços adaptados ao perfil de risco dos compradores, potencializado pelo histórico bancário e relativos às necessidades específicas das coberturas.
Além de melhor gerenciar seus riscos ao utilizar dados, as seguradoras também podem otimizar custos, reduzir fraudes e despesas relacionadas ao tratamento de sinistros. As características de um sinistro, combinados com dados históricos, padrões de consumo e de comportamento podem ser usadas para identificar cenários de fraudes, melhorando a eficiência da operação e indiretamente oferecer benefícios ao consumidor como um valor de prêmio reduzido a ser pago pelo segurado.
4. KYC (Know your Customer) e Onboardings otimizados
Ao fornecer acesso ágil, seguro e com o consetimento prévio do cliente o Open Insurance abre caminho para que as seguradoras otimizem seus processos de KYC (know-your-customer ou conheça o seu cliente) e onboarding digital em seus aplicativos e plataformas.
Combinado com a nova figura do Iniciador de Serviços de Seguros (ou SISS) abre as portas para o aumento da eficiência por parte das seguradoras – não apenas por conta do acesso a dados da vida financeria do cliente – mas também pela oportunidade de criar processos de identificação e onboarding mais rápidos e seguros e que ofereçam uma experiência 100% digital, diminuindo ou eliminando a necessidade de comprovantes e documentos físicos, assim como tarefas de aprovação manuais.
Os clientes de seguros poderão utilizar o SISS para realizar um rápido pagamento instantâneo via PIX (desde que devidamente autorizados) ou fazer um transferência bancária simples, permitindo que as operadoras e provedores verifiquem sua identidade ou quem sabe solicitar o pagamento da primeira parcela do seguro. Potencial enorme para explorar tecnologia de Identidades digitais (ou digital identites) ao permitir que o consumidor possa acessar serviços digitais oferecidos pelo SISS através do uso de credenciais seguras e certificadas, além da utilização de biometria (digital ou facial) para concluir transações usando apenas o aparecelho celular, reduzindo ou eliminando etapas de apresentação de documentação (papel) ou mesmo presença física.
Novas oportunidades à frente para as Seguradoras
Este Post não tem como objetivo apresentar um modelo exaustivo dos benefícios e de todos os novos modelos de negócio que o Open Insurance tem o poder de habilitar. Ao se beneficiar do acesso a dados de qualidade sobre os consumidores, incluindo os financeiros, reorientar a operação para novos modelos abertos como o Open Finance e tornar os produtos e serviços mais personalizados, o avanço do Open Insurance deve fomentar o crescimento do setor por meio de soluções inovadoras, do melhor conhecimento de seus clientes, além do imenso potencial de impulsionar a oferta de produtos de seguros mais acessíveis para uma parcela ainda maior da população. Tudo isso sem deixar de lado a qualidade, a segurança do processo e a experiência do consumidor final.
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